Revisitando a trilogia "Possuída"

*O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS!*

A primeira coisa que precisa ser dita é: O nome original do filme é "Ginger Snaps" (algo como Ginger Morde ou Mordidas da Ginger). Quem teve a ~brilhante~ ideia de lançar no Brasil como "Possuída" sendo que possessão, seja qual for, não tem absolutamente nada a ver com o filme?!

Dia desses nessa situação de quarentena que nos encontramos eu resolvi fazer um "desapego". Fui arrumar minhas estantes de DVDs e separei mais de 100 filmes que eu vou doar e dentre eles  achei a trilogia Possuída. Eu lembrava de ter visto os filmes quando foram lançados e nunca mais os revisitei, então na dúvida se doaria eles também ou não resolvi reassistí-los e tive uma grata surpresa. Agora que consigo compreender melhoras as tramas, me deparei com três bons filmes de terror.

O primeiro deles, "Possuída" foi lançado em dezembro de 2000, porém no Brasil ele nem passou pelos cinemas, sendo lançado direto em home vídeo na época das vídeo-locadoras.


A cena de abertura do filme já deixa claro qual é o tom da obra. É a apresentação de um trabalho que as irmãs fizeram para a escola cujo tema é a morte.


Com artes pouco atrativas, tão horríveis quanto o título PT-Br que não fazem jus ao filme e que pouco tem a ver com ele, foi lançado no Brasil após um relativo sucesso de bilheteria no Canada. O filme acompanha a irmãs Ginger (interpretada por Katherine Isabelle) e Brigitte (interpretada por Emily Perkins). Ambas são góticas e obcecadas pela morte, as típicas "adolescentes estranhas" dos filmes de terror. Quando eram crianças, elas fizeram um pacto que se matariam juntas aos 16 anos. Brigitte tem 15 anos e Ginger 16 e Ginger ainda não teve sua menarca.
Em decorrência de um episódio de bullying sofrido por Brigitte, ambas resolvem se vingar da agressora de Brigitte sequestrando o cachorro dela para dar-lhe um susto, o porém é que na cidade delas há algum animal matando cachorros e quando elas chegam no local, o cão da garota já está morto e no momento em que elas decidem ir embora, ocorre a menarca de Ginger.
Nesse momento, a fera que vinha matando os animais na cidade ataca Ginger.

 

Inacreditavelmente, Ginger sobrevive no dia seguinte ela está ótima. Suas feridas estão cicatrizadas e esse é o ponto de partida das transformações na vida de Ginger e Brigitte que terminará com as duas irmãs se enfrentando e precisando colocar a prova a promessa que fizeram anos atrás uma para a outra de serem apenas elas duas "conta o mundo".
Claramente uma das maiores referências do filme é a obra "Carrie, a Estranha". Assim como Carrie, antes que a "loucura" toda aconteça, tudo é bem estabelecido antes. A relação das irmãs, a situação em que elas vivem as os traços das personalidades são definidos, aí então o filme começa a se desenrolar.
Assim como em Carrie, os reais problemas na vida da protagonista começam depois que ela passa pela sua puberdade tardia, mas diferente de Carrie que não tinha informações, Gigner sabe pelo que está passando e recusa-se a isto, é um dos traços do "feminino" que ela, assim como a irmã, negam. O subtexto da obra é todo pautado na questão da puberdade e da sexualidade das protagonistas. Conforme a "fome" dentro de Ginger vai crescendo, seu corpo vai amadurecendo, ela vai mudando sua personalidade e ela acredita que essa "fome" está ligada ao sexo. Todas as questões da puberdade que Ginger passa são bem exploradas pelo filme tal como o embaraço que ela passa quando sua mãe conta para a família toda no meio do jantar que Ginger "virou mulher" e também os conflitos que surgem com Brigitte quando Ginger começa a demonstrar interesse por homens. Com a "fome" dentro dela crescendo cada vez mais e Ginger demonstrando cada vez mais mudanças no corpo como surgimento de pelos (claramente não-humanos) e o surgimento de um (preparem-se:) rabo (SIM, UM RABO! [um dos traços mais cômicos do sútil humor ácido do filme]), fica inegável que Ginger está passando por algo além de sua puberdade. O texto "entre as linhas" do roteiro fica bem claro em algumas falas, com por exemplo no momento em que Ginger e Brigitte precisam se livrar de um corpo, ao que Brigitte questiona a irmã se ela morderia o cadáver se estivesse sozinha ali ao que Ginger responde que não faria isso porque seria o mesmo que "fazer sexo" com o cadáver. A também uma pequena pensata sobre sexo desprotegido quando um personagem que teve relação sexual com Ginger começa a demonstrar sinais da licantropia e Brigitte a questiona. 
A atmosfera do filme é bem estabelecida e as coisas acontecem com calma, por exemplo a primeira morte on camera acontece apenas aos 54 minutos de filme, uma construção para que você conheça aquele personagem que irá morrer e se importe com ele, mesmo que o odeie, como é o caso da personagem em questão que quando morre a gente até queria que morresse logo.
O roteiro foi assinado por Karen Walton (assinaria alguns episódios das primeiras duas temporadas de Orphan Black) que só aceitou escrever depois que o diretor do filme John Fawcett garantiu a ela que ela teria total liberdade para escrever as personagens como quisesse, pois ela estava receosa que fosse forçada a montar suas personagens com base nos esteriótipos comuns do horror da época. Fawcett, além de garanti que ela poderia criar as personagens como quisesse, ainda a encorajou a fugir desses esteriótipos, o que deu muito certo. Walton teve uma sutileza e uma delicadeza na hora de traçar paralelos de sua obra com o subtexto da puberdade, porém o roteiro não é nenhum "definidor de gênero" e sofre muito com convenções bobas. São inseridos alguns deus ex machina ao decorrer da obra que podem ser um pouco irritantes (como o traficante de drogas que convencionalmente acredita em licantropia e conhece algo que poderá ajudar a curar Ginger, mesmo precisando de uma planta que coincidentemente aparece na casa de Brigitte que precisará testar a "cura" antes de aplicar na irmã quando coincidentemente se depara com a pessoa que foi contaminada por Ginger...) mas que não comprometem o divertimento que a obra trás.
A direção também é boa, o diretor consegue montar umas cenas bem "climáticas" usando iluminação natural em algumas cenas e um "filtro laranja" em outras pra mostrar a mudança e o humor dos personagens. Ele usa também efeitos práticos, o que faz o processo todo de transformação de Ginger ser bem mais crível, assim como as cenas de gore que são muito bem feitas e realistas, o que contribui para que o filme não fique tão datado, visualmente falando.

Com um novo diretor no projeto (assumido agora por Brett Sullivan) mas mantendo Karen no roteiro Emily e Katherine como Brigitte e Ginger, em 2004 foi lançada a continuação: Possuída 2: Força Incontrolável (agora colocando um subtítulo horrível ao título horrível escolhido para o filme).


A protagonista agora é Brigitte. O ponto de partida do filme é uma Brigitte fugitiva (que conseguiu se livrar dos acontecimentos do primeiro filme sem nenhum problema aparentemente [e inexplicavelmente]) e um ritmo muito mais acelerado, sendo que aqui a primeira morte acontece aos 7 minutos de filme.
Embora não esteja mais com Brigitte, Ginger ainda é uma presença constante na menta da irmã que sempre tem visões dela conforme a maldição dentro dela vai crescendo. Ficou muito interessante a manutenção da personagem de Ginger na história, pois um dos pontos mais fortes de todos os três filme é a dinâmica entre as atrizes principais. Emily e Katherine parece que nasceram para interpretar a irmã uma da outra.
Aqui, o paralelo não é mais atravessar a puberdade como no primeiro filme, mas sim os afeitos da repressão sexual. Brigitte está conseguindo conter o avanço da licantropia com o remédio desenvolvido por ela junto a Sam (o traficante do primeiro filme), porém após os eventos iniciais do filme, Brigitte vai parar em uma clínica de reabilitação para jovens viciadas onde ela é afastada do remédio e a maldição volta a crescer dentro dela.


FunFact: Os créditos do segundo filme fazem uma referência ao clássico O Massacre da Serra Elétrica de 74.
Longe do remédio, as alucinações de Brigitte se tornam cada vez mais fortes e ela sente que há outra criatura perseguindo ela, um lobisomem macho que quer acasalar com Brigitte. Com a aproximação cada vez mais eminente dessa outra fera, Brigitte precisa fugir do hospital e conta com a ajuda de uma adolescente que está no hospital cuidando de sua avó que teve o corpo todo queimado em um trágico, e muito mal explicado, incêndio. Interpretada por Tatiana Maslany, conhecida como Fantasma, ela consegue ser umas das personagens mais irritantes da história do cinema. O segundo filme conta com um roteiro que serve perfeitamente como uma continuação do primeiro, porém a direção não é tão inspirada quando a do original, a direção de arte deixa um pouco a desejar na criação de atmosfera que havia no primeiro e também aqui são introduzidos alguns efeitos especiais que gritam "anos 2000" na tela nas (felizmente) poucas vezes em que aparecem.
Mantém-se forte a questão da união feminina, que nos primeiro filme era feito entre as "mulheres da família" (Brigitte, Ginger e a mãe das duas, que por sinal, é uma ótima personagem e definitivamente, a mãe mais compreensiva do mundo), aqui se expande a Brigitte e alguns das demais internas, principalmente a Fantasma.
A uma tentativa de plot twist no final do filme que, embora construído ao decorrer da narrativa, é meio tosco quando se revela, pois não é nenhum grande segredo e não tem nenhuma justificativa. O final acaba ficando meio merda. 

Gravado simultaneamente ao segundo filme e lançado também em 2004, Possuída: O Início é uma narrativa ousada que precisou ser criativa, e foi, para poder contar mais uma história desse universo. 
Embora de uma maneira não tão satisfatória, o segundo filme dá um ponto final a narrativa das irmãs Fitzgerald, então o terceiro filme é uma prequel ambientado em 1815 e conta a historia de duas irmãs que deram origem a "maldição do sangue" das irmãs Fitzgerald.


As irmãs Ginger e Brigitte Fitzgerald estão perdidas em uma floresta quando se deparam com uma misteriosa nativa norte-americana que diz a Ginger que caso ela não mate o "garoto", uma irmã acabará matando a outra.
Sem entender, as duas conseguem abrigo em um forte, onde vivem apenas homens.
O terceiro filme de uma franquia sempre tente a ser o "maior" de todos, então nesse aqui temos tudo que um bom terceiro filme (e uma ótimo trash) precisam ter:
Xamã misterioso, viagem astral com ervas medicinais do xamã misterioso, sequencia de senho que explica a trama, fanático religioso que atormenta a vida dos protagonistas, matilha faminta de lobisomens devorando pessoas (ok, esse não tem em todo filme, mas sempre que puder colocar uma matilha de lobisomens famintos em seus filmes, coloquem!), violência muito mais gráfica com as mulheres do que com homens (não sei porque os cineastas ainda insistem nessa prática tão execrável!), mocinhos e vilões que se unem para deter um mal comum, xenofobia, e por aí vai... 
Neste aqui, a direção foi trocada novamente, porém a roteirista também mudou, então o texto pouco tem a ver com as pautas do anteriores. O roteiro do terceiro filme foi escrito por um homem e uma mulher, então não se pauta tanto apenas na questão do feminino perante as circunstâncias e não é um "texto nas entrelinhas" tão visível quanto aos demais filmes. Joga-se na tela a questão de como o fanatismo religioso, e a religião em si, são opressoras com as mulheres quando são apontados que todos os "males" que afligem a comunidade são responsabilidade direta das duas mulheres, pois tudo começa com sua chegada, mas isso não é explorado ao decorrer do filme.
Esse é o filme com a abertura mais "preguiçosa" dos três.


Ao fim, decidi que não só vou ficar com os três DVDs como também irei indicar que vocês assistam. Não são obras que "redefiniram o gênero", mas são ótimos filmes com entretenimentos bem válidos, e embora alguns "altos e baixos", não tem nenhum filme que seja horrível ou uma perda de tempo. O primeiro é o melhor do três, mas os sequentes são interessantes e valem a pena serem vistos, principalmente se você gosta dos teen slasher dos anos 90 e 2000, cujo estrutura de narrativa e roteiro dessa trilogia é bem familiar ao subgênero.

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